Capucho, em foto de Simon Prado. De sua página no Facebook. |
Quantos jamais se deixariam jogar nesta correnteza de imprecisão estilística, sob o risco maior de serem expurgados da lista dos escritores respeitáveis? São muito poucos os escritores que não parecem ansiar pelo respeito, seja de leitores, seja de críticos. De tão raros, a leitura de suas obras é capaz de me constranger, na medida em que denuncia a minha ainda pouca disposição de me lançar sem medo sobre a página virgem.
Luís Capucho é um desses raros artistas, sem dúvida. Não porque sua experiência pessoal seja a principal matéria-prima das duas obras suas que li até agora, mas porque sua narrativa é de uma sinceridade desconsertante. Se em "Cinema Orly", seu livro mais conhecido, é ele mesmo quem nos conta suas aventuras, em "Rato", é o filho de Dona Creuza quem não tem medo de voar no tapete puído de suas fraquezas. Ele mostra sem amarras quão difícil é a sua condição de jovem homossexual num ambiente de homens rudes e encaixados num mundo medíocre, no qual a masculinidade é forjada pela capacidade de demarcar território pela imposição da força física ou do status oriundo do trabalho, ou ainda, num outro nível, pela afirmação cotidiana de suas mazelas. O narrador de "Rato" é tão somente um menino superprotegido pela mãe, que se ocupa de privá-lo das dificuldades, desdobrando-se para lhe garantir o sustento numa vida de pouca privacidade e conforto.
Eu e Luís Capucho. Niterói, Agosto de 2013. Foto de Pedro Paz. |
Claro que a opção pela transparência e pela objetividade na representação das imagens poderia empobrecer o estilo. Em "Rato", faz-se necessário abstrair a beleza da fidelidade do autor às 'anotações' do personagem-narrador. Sem dúvida, Capucho poderia escolher a via fácil de analisar o seu personagem psicologicamente, buscando razões para as suas dúvidas e para suas tendências, contudo, corajosamente, o autor faz o contrário: deixa-o livre para expressar seu inconformismo e suas impressões sobre o sexo, o mundo masculino e o amor. Aliás, a incapacidade de o jovem narrador embrenhar-se pelo amor de um homem após conhecê-lo é, para mim, o traço fundamental desta personalidade, que a faz icônica de toda uma geração de homens homossexuais. Capucho consegue retratar esta característica com o primor que somente alcançam os hábeis em dizer a verdade. Ele é mesmo um caso raro de autor literário.
Capucho mostra, por trás de uma literatura que parece não se importar com a forma, toda a riqueza de sua narrativa dura, seca e cinzenta, para o espanto de quem esperava um sonho festivo, em se tratando de uma literatura realizada por um homossexual. Esta aspereza, a meu ver, é a chave para se admirar a sua obra.
Tudo parece jogado a esmo, porém há um cálculo escondido naquele mundo sem sentido, sem fronteiras de "Rato". Há uma penumbra que me fez querer acompanhar aquele jovem, que me encantou, apesar de sua atitude mimada. Ainda que o elemento rato tenha sumido no texto, ele persiste na ação do jovem, sem que referências insistentes ocorram para amparar a escolha comparativa. Nós, homens homossexuais sabemos bem o que é caminhar rente ao chão, entre frestras nas paredes, a causar nojo em cada aparição inesperada. Esconder-se foi a sábia escolha deste jovem e a de muitos de nós. Sim, em alguma medida, todos somos como ele, ainda que tenhamos experiências distintas.
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Aquela sinceridade a que me referi, tão evidente em "Rato", aquela obediência aos ditames do ser fictício que conduz a narrativa tornam o livro um objeto transformador e curativo, como seu antecessor, "Cinema Orly". Eu penso ser este o máximo a que pode chegar uma obra literária. Poucos alcançaram este intento. Estes corajosos normalmente custaram a ser reconhecidos, mas foram eles os que cozeram as feridas da humanidade - estar entre eles deveria ser a ânsia de todo literato.
O medo, no entanto, empurra a maioria dos escritores do alto dos barrancos da língua, colorindo, com as firulas de suas prosas, o seu caminho descendente até o poço de mediocridade em que, confortavelmente, se instalam e se preparam para faturar bastante dinheiro, uma vez que têm como recompensa o gosto de leitores igualmente acovardados.